A nostalgia é uma âncora pesada demais
Um amontoado de palavras sobre romper com o ciclo de estar preso a lugares, pessoas e circunstâncias
Quando tinha cerca dos 20 anos, um amigo mais velho repetia em tom de lamentação que a alegria da vida tem prazo de validade. Reforçava a cada encontro que o tempo com os amigos é curto e que o melhor fica pra trás. Discordava na época e continuo discordando, mas confesso, o exemplo dele me assunta. Tenho medo de ser arrastado pela correnteza da vida e perder o ímpeto necessário para manter a conexão com o resto do mundo.
Quando falamos de nostalgia, uma emoção comum, a cabeça voa longe. Para um aniversário na infância, os amigos da época do “terceirão para a vida” (credo) ou qualquer objeto deixado para trás no espaço-tempo - podendo ser um pet, o amor de verão ou o gostinho do chocolate Surpresa. Esse relacionamento com o passado é bom ou ruim? Além, era bom mesmo ou só memória afetiva?
Ativamos a memória em busca de conforto ou consolo e o resultado é essa doce melancolia. Uma memória nunca é só uma memória. Quando resgatamos a lembrança do chocolate Surpresa, ele deixa de ser uma barrinha de parafina. Carrega também a hora do recreio, o doce do fim de semana e os cards colecionáveis de dinossauros. O fenômeno deságua numa lembrança afetuosa ou no reflexo de um vazio incondicional.
Desejo de retornar
Essa ponte que nos transporta ao passado diz respeito à algo que falta. Aí, envelhecer sem saber lidar com a finitude das coisas machuca. O mundo continua girando e a vida acontecendo, nós, vamos arrastados nessa cauda de cometa. Sem a opção de permanecer. Creio que aí que recorremos a um refúgio.
Em sua obra de 1983, Andrei Tarkovski tratou do assunto sob o olhar de um estrangeiro russo na Itália. Longe de casa e da família, sua sobriedade começa a definhar. Para o personagem, também Andrei, não há tempo para um novo amor. A apreciação pela terra mãe o cegou para o presente, e para o carinho de Eugenia, a tradutora que lhe faz companhia em sua estada. O sentimento cresceu tanto dentro do sujeito que passa a ser representado em tela preso dentro de suas lembranças em tons de cinza.
A vida adulta é uma prisão mesmo. Cheia de circunstâncias e exigências limitadoras, físicas ou comportamentais. Adicione o bônus de lidar com diferentes tipos de luto e passagens, acabo entendendo porque meu amigo se deprimia facilmente sempre que tinha na mão um copo de cerveja.
Se cada um tem seu próprio ritmo, existe um pacto social e obrigatório que trata conquistar patrimônio, formar família com idade pré-determinada. De quebra, sacrificar ambições e prazeres para acompanhar o fluxo social. Se você é mulher, o buraco é mais baixo.
A vida é uma série de colisões com o futuro
Viver é caminhar em direção ao fim. Não vejo outro jeito. E cultivar raízes é uma bênção. Escrevemos as linhas da vida assim, aceitando ou rejeitando circunstâncias, equilibrando essas emoções. Suportando muita merda também.
Se ancorar na nostalgia é perder a capacidade de imaginar futuros diferentes. Nada reconstituído é capaz de refazer o passado, mesmo dispondo de todas as informações do mundo. Ainda dá pra desejar, querer e construir. E se não for possível, dane-se. O horizonte existe para ser perseguido com intensidade. Nascemos em um mundo que nos molda, mas dá pra mudar como percebemos o mundo.
É como dizia o velho Abu: “A vida é sua, estrague-a como quiser”.
Sobre a família, o afeto
Gosto dos filmes do japonês Hirokazu Kore-eda. O cineasta explora famílias disfuncionais que cultivam laços mais fortes que o sangue, com a empatia necessária para mostrar que o afeto pode surgir mesmo nas situações mais improváveis. Broker – Uma Nova Chance, caiu no meu colo como uma bomba poucos dias após a discussão iniciada com a PL do Est*pro.
A história gira em torno das “Baby Boxes”, que existem na Coréia do Sul desde 2009. Por elas, famílias depositam anonimamente recém-nascidos indesejados que tomam novo destino com auxílio da igreja. Dois homens se aproveitam disso para raptarem crianças e vende-las no mercado de adoção ilegal (que rende uma nota). Uma mãe confronta os malandros para reaver seu filho, mas que acaba convencida de que não tem condições de oferecer estabilidade, se juntando a eles para encontrar um novo lar para o bebê.
Mesmo com a tensão em torno do tema, o filme é leve e mescla comédia e romance policial com o drama. Sem linearidade aparente ou julgamento moral.
Indicação da Ana Clara Matta. Você aluga no Prime Video.
Ainda disponibilizei o 3º volume da playlist mensal no Spotify e no Tidal.
Contém alguns dos lançamentos que mais escutei em maio e junho, com uma notinha para o show do Interpol. Foi um puta evento.
Por hoje é só. Um abraço,