Posso andar com você no recreio?
O ser a partir do outro e o nada. Ou o que entendo sobre servir e existir.
Seguindo seus instintos, o homo sapiens entende, assim como outros animais, que precisa se agrupar a fim de garantir a sobrevivência. Nos formamos em comunidades e tribos, cada uma com sua finalidade. Isso acontece porque: 1) o homem não é auto-suficiente para governar a si próprio; 2) Não basta só pensar e falar. Independente de uma personalidade introvertida ou extrovertida, é natural o desejo de compartilhar experiências, aprendizados, momentos prazerosos e difíceis.
A companhia valida sua existência. Lhe presta importância e dá significado. Encontrar reconhecimento no próximo é bonito e ao mesmo tempo proporciona ascensão e brilho ao ser. Jean-Paul Sartre em “O Ser e o Nada” define como a relação entre os sujeitos manifesta uma realidade humana presente ou ausente. Sendo curto e grosso, não há existência por si só. O indivíduo nasce estabelecido numa historicidade e cultura. Entre os outros, entre objetos.
A noção de pertencimento tende rumo ao narcísico. A busca torna-se uma satisfação com o mínimo: aceitação. E falhar nessa missão acarreta em um sentimento profundo de deslocamento. Existem esses dois pólos: o otimismo de seremos aceitos e admirados por nossas ideias e paixões e o medo da solidão.
Um vazio através do túnel da aceitação
O animador Hayao Miyazaki trata, entre uma porção de outros assuntos, sobre identidade e pertencimento em sua metáfora para o amadurecimento. A Viagem de Chihiro (veja na Netflix) nos lembra como ficamos vulneráveis quando presos a um só lugar.
Chihiro é uma menina de 10 anos que está em mudança de cidade com a família. Afetada pelas despedidas, tem medo do que vai encontrar em sua nova casa e colégio. Ao atravessar um túnel abandonado, ela se transporta para um mundo habitado por espíritos estranhos, criaturas mágicas e bruxaria. Nesse meio, ela é diferente e destratada. Suas roupas, cheiro e até o nome são motivo de rejeição nessa realidade - onde precisa aprender os costumes e particularidades a fim de poder servir, se sentir útil e integrada.
Outra manifestação do pertencimento no filme é o espírito “Sem Rosto”. Ele implora por aceitação dos viventes por meio de suas generosas ofertas. De acordo com o diretor, o personagem, visto como um véu preto e uma máscara, não é nem uma pessoa ou entidade, mas a ideia de todas as pessoas que vagam pela vida em busca de conforto através do outro.
Há muitos indivíduos assim, em busca de apego, mas que por qualquer motivo não conseguem e se frustram. O espírito se aproxima de Chihiro por conta dos gestos de gentileza que ela tem com ele. Por um momento (este), encontram um no outro completude em resposta a esse vazio. Quando Sem Rosto se acalma e encontra sentido em um novo lugar, se separa de Chihiro, que parte para encerrar sua viagem.
Ninguém vai me fazer voltar atrás
A solidão e a carência não se devem somente às circunstâncias de sentimento sobre o afeto dos outros. Ou, se eles nos amam ou deixam disso. É possível ser (e se sentir) parte de algo sob diferentes situações. A gente vive essa contradição: ao mesmo tempo que desejamos ter a nossa subjetividade respeitada, também queremos pertencer.
“O outro é indispensável à minha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo. Nessas condições, a descoberta da minha intimidade desvenda-me, simultaneamente, a existência do outro como uma liberdade colocada na minha frente, que só pensa e só quer ou a favor ou contra mim. Desse modo, descobrimos imediatamente um mundo a que chamaremos de intersubjetividade e é nesse mundo que o homem decide o que ele é e o que são os outros.”
Sartre em “O Existencialismo é um Humanismo”
Deixar-se suprimir para caber em qualquer espaço é uma morte dolorosa. Uma ilusão a de acreditar que, consumindo determinados códigos ou frequentando certos espaços podemos ocupar uma realidade. Acessar é diferente de pertencer.
Conheça e reconheça gente que te respeita. Esse é o melhor tipo de match. Porque se não, você vai se sentir inadequado ou inadequada. Vai sofrer com vergonha dos seus gostos, crenças e essência. Parece óbvio, mas ninguém ensina na escola. E crescer sem saber disso prejudica a visão do mundo e de si mesmo.
Nos conectamos uns com os outros, com os entes queridos, com a natureza ou com qualquer coisa que faça sentido. Assim alimentamos a sensação de que desempenhamos um papel. Pertencimento tem pouco a ver com encontrar pares ou espelhos, no fim das contas, é sobre acolhimento, que pode vir de onde não se espera.
Nada exime nossa responsabilidade sobre isso.
Até a próxima,
Tenho pensando muito nisso…
Apesar da morbidez, esse filme é super carismático e tem tudo a ver com nossa conversa. Às Vezes Quero Sumir apresenta uma Daisy Ridley diferente da que conhecemos por Star Wars. Ela é Fran, e gosta de pensar na própria morte. É o que dá sentido para sua vida pacata. Quando conhece Robert, um carinha novo que chegou ao seu escritório, começa a entender a graça que existe em experiências ordinárias: um date no cinema, dividir o pedaço de torta e uma noite de conversa e brincadeira com os amigos. Megan Stalter, a Kayla de Hacks, também participa do elenco.
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